sábado, 12 de dezembro de 2009


ZUNÁI - Revista de poesia & debates


ZUNÁI EM DEBATE

É possível conciliar experimentação formal e lirismo na criação poética?


Adalberto Muller: A oposição posta aqui entre lirismo e experimentação estética me lembra a oposição famosa que Valéry discutiu, sobre poesia e pensamento abstrato. Como ele, gostaria de encurtar a distância que parece estar separando essas noções, lirismo e experimentação estética. Em primeiro lugar, pergunto-me: o que se entende aqui por "lirismo"? Um tipo de poesia que exprime emoções, que lida com temas amorosos, ou, no mínimo, sentimentais, tudo envolto numa atmosfera antiquada e pesadona? Por outro lado, a expressão "experimentação estética" parece evocar procedimentos típicos da modernidade e das vanguardas, que, por sinal, abandonaram os velhos temas da tradição do "lirismo". Do modo que está, então, posta essa questão, diria que as duas noções são excludentes, num primeiro momento. Pois a experimentação estética da alta modernidade (com Baudelaire, Mallarmé, Eliot, Drummond, Concretismo), ao negar as formas clássicas do lirismo, negou também sua vertente temática mais sentimental, herdada do romantismo. O famoso mini-poema de Oswald justamente desconstrói esse lirismo: "AMOR // humor". Por outro lado, como ouvi certa feita de Paulo Henriques Britto, a demanda lírica da sociedade foi passando paulatinamente para o território da canção popular, assim como a demanda narrativa, anteriormente coberta pelo romance, foi passando para o cinema e a tevê. A canção popular, até bem recentemente, nada mais era do que um lugar de expansão de velhos temas do lirimo. Isso ocorre, por exemplo, na chamada canção "romântica", que, nos anos 50, no Brasil, tratava basicamente da chamada "dor-de-cotovelo". No que tange a poesia, e particularmente a poesia brasileira, ficamos bastante marcados pelo anti-lirismo de João Cabral. O que ele queria dizer com anti-lirismo? Uma poesia que não trata, justamente, da dor-de-cotovelo. É preciso lembrar que a poesia de Cabral surge no auge desse tipo de canção, que, quase exclusivamente, trata de amores e desamores; na época de Dolores Duran, Linda Baptista, Herivelto Martins, Elizete Cardoso. Então, o que João Cabral propõe é uma espécie de "limpeza", uma poesia voltada para as coisas, uma poesia que nega o sentimento (atenção: não se pense que negue a subjetividade!) em favor, justamente, da experimentação. Antes de Cabral, Drummond, com todo o seu sarcasmo, já dava marretadas no lirismo sentimental (veja-se o excelente "Necrológio dos desiludidos do amor"). Mas felizmente tivemos também um Manoel Bandeira, em cuja poesia o lirismo ressurge no que ele tem de primordial, de grego, mesmo: a associação entre o canto e o mundo dos afetos. Não nos esqueçamos que a origem do lirismo é grega, e tem a ver com o fato de Orfeu ter feito uma lira com suas tripas, para resgatar sua amada Eurídice do inferno. Estamos marcados por esse gesto, ainda que seja um mito. É verdade, porém, que, entre os jovens poetas, os temas tipicamente líricos não estejam muito na ordem do dia. Recentemente, organizando uma antologia cujo tema é Amor e Morte na poesia brasileira, pude constatar que grande parte dos poetas contemporâneos pouco escreve (pelo menos diretamente), sobre esses temas essenciais do lirismo ocidental. Em muitos casos, por influência de Cabral e dos Concretos, ou ainda, por infuência dos poetas americanos (como os imagistas, os objetivistas e os da L=A=N=G=U=A=G=E). Aos jovens poetas, interessa mais a anotação das sensações, mais que dos sentimentos. E mesmo os sentimentos, no mundo pós-modernos, se modificaram, sobretudo com a diversificação sexual mais explícita, e com a sensível modificação das práticas erótico-amorosas. De minha parte, acredito que lidar com temas líricos como o amor (e suas adjacências), não significa abrir mão da experimentação (ou seja, da modernidade). Meu mentor, nesse caso, é o poeta que, a meu ver, melhor soube conciliar os temas clássicos do lirismo com a experimentação estética mais ousada da poesia moderna: e.e.cummings. Gosto de escrever sobre temas que deveriam ser expressos em elegias, odes ou epitalâmios, mas submentendo-os a uma nova configuração verbal e gráfica. É o que tentei fazer, em boa parte dos poemas que publiquei em Enquanto velo teu sono. Num dos poemas desse livro, por exemplo, exploro a possibilidade de falar do amor sem nomear expressamente o verbo amar, mas apenas aludir a ele:
ENQUANTO

rabisco um verso
mil trilhões de estrelas
brilham - estralam? -
e euponto perdido no universo
entre mercúrio e urano
arrisco um verbo
que
nos
constela.

Em suma, acredito que os grandes temas líricos, na mesmo medida em que ganham novas formas de expressão, vão também influenciando a formação de novas experiências e experimentações. Pois o amor, que é a base e o fundamento do gesto órfico, não é uma experimentação - e o que é mais - estética?
Adalberto Müller nasceu em Ponta Porã (MT) em 1966. Publicou Ex Officio (Paris, 1995) e Enquanto velo teu sono (7 Letras, 2003), além de traduções de Ponge, Celan e e.e.cummings (a sair, pela editora UnB, coleção poetas do mundo). É professor de literatura e cinema na UFF.
Entrevista de Adalbert Muller a revista Zunái, especializada em poesia.
Zunái ano v - Edição XVIII- agosto de 2009

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