O CINEMA SEGUNDO PASOLINI OU
A LÍNGUA ESCRITA DA REALIDADE
Adalberto Müller [Publicado em Devires, n. 3, B. Horizonte, p. 88-105, 2006]
Não é difícil comprovar que o conceito de “cinema de poesia” desenvolvido por Pasolini nos anos 60 poderia ser aplicado a muitas obras do cinema contemporâneo. Ocorre que muitos dos procedimentos técnicos do “cinema de poesia” voltaram à tona no cinema contemporâneo, e não apenas em filmes experimentais, ou de vanguarda. Pode-se encontrar esses procedimentos em filmes produzidos para o grande público, e até mesmo em programas televisivos ou em filmes publicitários, o que contribui para tornar ainda mais difícil uma separação muito rígida entre o cinema dito “de arte” e o cinema dito “industrial”. Fala-se hoje de produtos híbridos, nos quais as fronteiras entre o poético e o massivo tende a diminuir sensivelmente, pelo menos do ponto de vista dos procedimentos (das estratégias textuais). Desse modo, pode-se descrever o uso de algo muito próximo do conceito de “subjetiva indireta livre”, por diferentes razões, em filmes como The thin red line (Além da linha vermelha), ou Memento (Amnésia) ou ainda em 21 gramas; nesses filmes, ademais, se sente a presença de alguns dos elementos estilísticos do cinema de poesia, arrolados por Pasolini: “contraluzes com reflexos na câmera, movimentos manuais de câmera, travellings exasperantes, montagens falseadas, raccords irritantes” etc.; também se pode detectar a famosa “imobilidade do plano”, que Pasolini elogia em Antonioni, no primeiro capítulo da série televisiva Os maias; além disso, o “cinema sob o cinema” ocorre pelo uso da intertextualidade e da metalinguagem em filmes dirigidos para um público pouco ortodoxo em matéria de cinematografia, tais como A lenda do cavaleiro sem cabeça ou Capitão Sky e o mundo de amanhã; não é difícil também verificar-se a utilização de vários suportes (filme, vídeo, fotografia) e a manipulação ostensiva do ponto de vista narrativo em Lola rennt (Lola corre Lola) ou em Traffic. Por essas e outras, não me parece inútil repensar hoje a rígida separação entre um “cinema de poesia” e um “cinema de prosa”, que se levantou depois da conferência proferida por Pasolini no Festival de Pesaro, em 1966.
Seria necessário então deslocar a reflexão sobre o conceito de “cinema de poesia” para a relação que Pasolini estabelece entre o cinema e a realidade, reflexão que parece alastrar-se em seus ensaios, em suas entrevistas e em seus filmes, formando uma semiologia da realidade, na qual o cinema seria visto como uma “língua escrita da realidade”. No conjunto da semiologia pasoliniana, o conceito “cinema de poesia” parece ocupar uma posição importante, mas não central.
Nessa visada à reflexão de Pasolini, a oposição entre “cinema de poesia” e “cinema de prosa” (ou a falsa oposição entre poesia e narrativa, pois o cinema de poesia é visceralmente narrativo, como veremos adiante) importa menos que a distinção entre linguagem e realidade, distinção que Pasolini enfatizou como a mais importante no seu pensamento. Tal pensamento se via antes de mais nada como uma ação, capaz de propor a transformação (ainda que pelo viés de uma utopia hoje pouco convincente) do status quo. Em suma, dir-se-ia que, no pensamento pasoliniano, as fronteiras que criamos para separar os domínios do ético, do estético e do político parecem não fazer muito sentido. Talvez (e essa é uma questão controversa), uma tal atitude tenha custado a Pasolini o preço de sua própria vida.
Uma reflexão sobre a relação entre cinema e poesia e deveria partir de uma constatação óbvia: cinema e poesia são duas coisas que parecem ter poucos pontos em comum. A poesia é, dentre as artes, aquela que mais parece se afastar do cinema. Sobretudo porque, ao contrário da origem arcaica da poesia, o cinema é uma arte nascida na sociedade industrial, é ela própria a “obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, como assinalava Benjamin nos anos 20.
Quando reflete sobre a questão da poesia (da autoralidade, da subjetividade) no cinema, Pasolini justamente chama a atenção para o fato de que o aspecto industrial e técnico do cinema deveria ser enxergado antes de mais nada por um prisma ideológico: é preciso, segundo ele “ideologizar e desontologizar as técnicas audiovisuais”. Pensar a poesia no cinema, o cinema de poesia, ou ainda o cinema e a poesia conjuntamente, poderia ser portanto uma forma de humanizar o cinema, retirá-lo da sua prisão tecnológica, formulando-se a questão seguinte: seria possível pensar uma poesia do cinema, levando em conta o seu aspecto tecnológico, isto é, de arte industrial?
A poesia, segundo a sua definição moderna (refiro-me à definição de Hegel), depende essencialmente do indivíduo, ela se enraíza na subjetividade, pois a subjetividade surge como força propulsora maior da Arte. Na classificação que faz das artes, o filósofo chega a definir a poesia como a forma de arte que mais se aproxima dos conceitos da arte romântica (para nós, moderna) de interioridade e subjetividade, e a forma artística na qual o espírito (a interioridade) se manifesta com maior grau de liberdade em relação à exterioridade: “A arte da poesia é a arte universal do espírito tornado livre em si mesmo e que não está preso ao material exterior e sensível para a sua realização, que se anuncia apenas no espaço e no tempo interiores das representações e sentimentos”.
Nesse sentido, a poesia sempre vai colocar em questão o sujeito, porque, por mais objetiva que ela possa ser, por mais que nela estejam implicadas questões de ordem social, política, ou filosófica, ela se realiza antes de mais nada no espaço da interioridade, que é aquela fonte de onde brota a linguagem essencial.
Na história do cinema, muito antes de Pasolini já se falava da relação entre cinema e poesia. As primeiras tentativas de definir uma certa noção de cinema poético surgiram na década de 20. Jean Epstein, por exemplo, defendia que o cinema se tornava artístico a partir da definição de fotogenia. Além disso, Epstein definia como poéticos certos recursos do cinema que permitem alterar a percepção das coisas, como o close up, e a câmara lenta:
Epstein valorizou as noções de fotogenia e de ritmo, considerando que tanto a plasticidade quanto os movimentos de câmera são capazes de extrair das coisas do mundo significados recônditos que sua existência prosaica retém. O poético se manifestaria, assim, no ponto em que o discurso fílmico, decompondo “um fato em seus elementos fotogênicos”, libertar-se-ia da lógica da seqüencialidade do relato e, através dos recursos técnicos de que se constitui, revelaria a essencialidade de um gesto, de um objeto, de um sentimento.
Como afirma Jacques Aumont, contudo, o conceito de Epstein, de “herança simbolista inconfessa e vanguardismo declarado” era “cômodo, porque vago”. Numa direção similar à de Epstein, Germaine Dullac, em texto de 1931, destacava que o cinema de vanguarda devia levar em consideração o caráter ao mesmo tempo industrial e comercial do cinema, antes de propor uma aventura pelo reino da criação pura. Para Dullac era preciso pensar uma terceira via entre o “cinema-indústria” e o “cinema-de-vanguarda”, que ele chamará simplesmente de “cinema sem qualificativo”. Ele elogia um filme como A roda, de Abel Gance, porque
Nesse filme, a psicologia, os gestos, o drama, tornavam-se dependentes de uma cadência. Os personagens já não eram mais os únicos fatores importantes da obra, mas também os objetos, as máquinas, o comprimento das imagens, sua composição, sua oposição, seu enquadramento, seu raccord. Trilhos, locomotivas, chaminés, rodas, manômetro, fumaça, túneis, jogam com a imagem e com personagens, um drama novo surgia composto de sentimentos brutos, do desenvolvimento das linhas. A concepção de arte do movimento e das tomadas racionalmente medidas adquiriu seus direitos, tanto quanto a expressão das “coisas”, atingindo-se um magnífico poema visual feito de instintos humanos de vida, jogando com a matéria e o imponderável. Poema sinfônico, no qual o sentimento eclode não em fato, não em ato, mas em sonoridades visuais. Insensivelmente a efabulação narrativa e o desempenho do ator [jeu de l’artiste] perdiam seu valor isolado em benefício de uma orquestração geral feita de ritmos, de enquadramentos, de ângulos, de luz, de proporções, de oposições e de concordância de imagens.
Fica claro que, para Dullac, como para toda uma tradição de defensores da poesia no cinema, o prosaico se confundia com os aspectos ligados ao romance e ao teatro (“personagens”, “efabulação narrativa e desempenho do ator”). Dullac deixava claro também que o cinema de vanguarda teria necessariamente um público restrito, mas não desconsiderava o fato de que cedo ou tarde as experiências da vanguarda acabariam sendo absorvidas pelo cinema comercial. A poesia no cinema também seria defendida por Luís Buñuel, em uma conferência de 1958, em que reivindicou a prática de um cinema que se configurasse como instrumento de poesia na medida em que deixasse as imagens fluir com “liberdade”: “Um cinema no qual as imagens do desejo, os desvios da ordem cronológica, os espaços do sonho, o caráter insólito das coisas ordinárias encontrassem a expressão concreta de sua liberdade”. O que vem a ser essa liberdade das imagens, no entanto, é coisa que nem Dullac nem Buñuel definiram muito bem, mantendo uma espécie de aura indefinível em torno da palavra poesia, tal como hoje se constuma usar o termo poesia a diversos produtos culturais, como uma espécie de plus.
A preocupação com a poesia da imagem está no centro das reflexões de Pier Paolo Pasolini sobre o cinema. Dentro da história do cinema, Pasolini é lembrado sobretudo por seu conceito de “cinema de poesia”, que deu origem a uma série de controvérsias e mal-entendidos. Pasolini era uma pessoa controversa. Desde seus primeiros poemas, passando por seu primeiro filme, Acattone-Desajuste social, até as suas últimas palavras para a imprensa italiana, o diretor italiano sempre deixou claro que não aceitava as regras do jogo (nem do literário, nem do cinematográfico e nem do político, nem do do moral). Não seria diferente sua postura teórica com relação ao cinema.
O conceito de “cinema de poesia” deveria, a meu ver, ser entendido à luz da complexidade de elaboração do pensamento de Pasolini a respeito do o que ele chama de “Semiologia da Realidade” ou “Semiologia da ação”, que ele desenvolve nos ensaios de Empirismo hereje (título que tão bem o define, pelo seu caráter paradoxal). Minha hipótese é que tanto o cinema quanto a poesia, e até mesmo a semiótica, são para Pasolini apenas meios para se pensar a coisa mais complexa que seria a “realidade bruta”. Desse modo o cinema é definido como um modelo analógico da realidade, a qual Pasolini definiu como “um plano seqüência infinito”. Coloca-se então em questão aqui: pode o cinema constituir de fato um modelo adquado para se pensar a ralidade? Em que medida um cinema de poesia (cinema que pressupõe a montagem) pode propor uma alternativa à realidade, e, portanto, à História.
Acredito que tentar responder a essa pergunta é de alguma forma aproximar-se de uma “poética” – ou pensamento criador – pasoliniana, na qual desempenham um papel importante tanto os ensaios quanto os filmes, e até mesmo a vida do homem controverso que ele foi.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que Pasolini via o cinema de poesia como forma de “acentuar ainda mais a subjetividade na narrativa” cinematográfica. Em segundo lugar, a reflexão sobre o cinema deveria revelar a brutalidade que se oculta sob a “inocência da técnica”:
Um fato que é certo, de qualquer modo: sobre estes problemas é preciso trabalhar, em conjunto ou a sós, com competência ou inspiração, mas sobretudo trabalhar. É preciso ideologizar, é preciso desontologizar. As técnicas audiovisuais são doravante parte importante do nosso mundo, ou seja: do mundo do neocapitalismo técnico que avança, e cuja tendência é tornar as suas técnicas ao mesmo tempo a-ideológicas e ontológicas: torná-las tácitas e irrelativas, torná-las habituais, torná-las religiosas. Nós, que somos humanistas laicos, ou, pelo menos, platônicos não misólogos, devemos batermos, por conseguinte, para desmistificar a “inocência da técnica”, até à última gota de sangue. (183)
Também é preciso dizer que as reflexões de Pasolini sobre o “cinema de poesia” não se restringem à conferência proferida durante o Festival de Pesaro. O conceito está disseminado por praticamente todos os seus escritos dos anos 60, e que constituem o volume Empirismo hereje. Em “Pistas para o cinema”, por exemplo Pasolini desenvolve algumas teses da conferência de Pesaro, sobretudo quando estabelece a distinção (nominalista) entre poema e poesia / humanidade e homens: “Conhecemos os filmes (como conhecemos os homens ou os poemas), mas não conhecemos o Cinema (como não conhecemos a Humanidade ou a Poesia)” (185). Nesse mesmo ensaio, defende que “a realidade é um cinema em estado de natureza” (186), sendo que o cinema será uma “língua escrita da realidade” (id.), exatamente por não ser nem arbitrário nem simbólico, uma vez que para Pasolini o cinema representa a realidade através da realidade: “o cinema é uma língua que não se afasta nunca da realidade (é a sua reprodução!)...é, portanto, um plano seqüência infinito (a relação é a mesma que existe entre a língua oral e a língua escrita).” (187). A definição do cinema com língua é importante, pois Pasolini vai se servir de alguns elementos do estruturalismo lingüístico para dialetizar a relação entre cinema e realidade. Um desses elementos é a distinção feita pelo lingüista André Martinet entre os elementos mínimos de significação (monemas) e os de articulação (fonemas), que constituem numa língua a sua dupla articulação. Para Pasolini, o cinema é língua porque também possui também uma dupla articulação (mas aqui justamente ele se afasta de Metz):“O monema desta língua escrita da realidade é, por conseguinte, aquilo que em termos técnicos (tendentes a tornarem-se uma duplicação em termos filmolingüísticos) se chama um plano: o monema-plano é assim a unidade da primeira articulação. De fato, porém, um plano não é mais do que a composição de objetos, a que, por analogia com os fonemas quem compõem o monema lingüístico, eu chamo de ‘cinemas’” (188).
Discutir sobre o valor do plano era para Pasolini antes de mais nada discutir o grande tema, em voga desde o início do neo-realismo italiano: o plano-seqüência. Pasolini recusava, em seus filmes, o uso do plano-seqüência (preferindo às vezes algo que se parecia a uma série de fotos). O que estava em jogo para o cineasta era não apenas o “naturalismo” do plano-seqüência, mas o seu apego demasiado a um “natural” que a montagem deveria recusar. Ao evitar o plano seqüência, Pasolini afirma a prioridade dada ao filme sobre o cinema :
Ora, a diferença entre o cinema e o filme, todos os filmes, consiste exatamente nisto: que o cinema possui a linearidade de um plano-seqüência infinito e contínuo – analítica – enquanto os filmes possuem uma linearidade potencialmente infinita e contínua – mas sintética.
Há autores que procuram, dado o seu amor pacífico e naturalista pelas coisas do mundo, reproduzir nos seus filmes a linearidade analítica, que terá o mais possível uma duração idêntica à da realidade; outros realizadores são, pelo contrário, favoráveis a uma montagem que torne essa linearidade o mais possível sintética (pertenço a este último grupo). (188-9)
A montagem que sintetiza é portanto a que recusa a naturalidade, sobretudo no que diz respeito ao tempo (“duração”). Essa distinção entre o sintético e o analítico vai encontrar um desdobramento conceitual num outro binômio: cinema de poesia x cinema de prosa. Para Pasolini, para se entender essa distinção, é preciso que retornemos ao “cinema das origens”, ou seja, aquele que se fazia antes da estandardização dos procedimentos pelos estúdios americanos. Para Pasolini o cinema das origens é um cinema de poesia, primeiro porque não se afirmara ainda, a não ser de modo embrionário, uma organização cinematográfica industrial, visando uma ‘narrativa’ convencional; segundo, por força das restrições técnicas do cinema mudo. A entrada do cinema na fase de industrialização e a introdução do som fizeram dele uma ‘língua de prosa narrativa”. (190)
As linhas mestras do ensaio “O Cinema de Poesia” se encaminham para o acirramento dessa distinção entre poesia e prosa, que valeriam a Pasolini uma série de críticas (de Metz, de Godard e de Rohmer, particularmente). Mas parece que muitos tomaram (e ainda tomam) o texto de Pasolini como um manifesto estético, sem atentar para o seu aspecto semiológico. O primeiro ponto de discussão que Pasolini situa é a distinção entre a linguagem literária e a cinematográfica, no plural:“Enquanto as linguagens literárias baseiam as suas invenções numa base institucional de língua instrumental, ao alcance de todos os que falam, as linguagens cinematográficas parecem escapar-se-lhe: não têm, como base real, nenhuma língua comunicativa”. (137).
Para operacionalizar sua distinção, Pasolini lança mão de outro par conceitual: a distinção semiótica entre o linsegno (lin-signo signo lingüístico, palavra) e o im-segno (im-signo signo visual, imagem; o que vemos na realidade, mas também as imagens dos sonhos e da memória, pressupondo-se existir um “hipotético sistema de signos visíveis”). Ao tentar entender o im-signo, Pasolini desfaz a possível semelhança entre literatura e cinema:
Tanto a mímica e a realidade bruta como os sonhos e os mecanismos da memória são fatos quase pré-humanos ou no limite do humano: são, em todo caso, pré-gramaticais e absolutamente pré-morfológicos.O instrumento de linguagem sobre o qual se implanta o cinema é por isso de tipo irracionalista: eis o que explica a qualidade onírica profunda do cinema e também a sua absoluta e imprescindível concreção, digamos, objetal. (138-9)
Ou seja: o cinema se funda sobre um conjunto de im-signos não “dicionarizado”, ao contrário do que acontece com os lin-signos, com os quais a literatura trabalha. Daí porque o trabalho do escritor e o do cineasta são bastante distintos:“A operação do escritor consiste em tomar desse dicionário de palavras(...)e fazer delas um uso particular”; no entanto, para o cineasta, “não existe um dicionário de imagens(...)mas uma possibilidade infinita”. (139)
A história do cinema consiste numa tentativa de criar esse “dicionário”. O autor de Empirismo hereje adverte que aquilo que se chama de linguagem cinematografica é antes uma “convenção estilística” que uma língua propriamente dita. Pasolini considera aqui o conceito de Saussure de língua como sistema articulado em langue e parole. Para o cineasta italiano, o cinema é uma parole sem a langue: “A imagem das rodas de um trem correndo entre baforadas de vapor”, afirma Pasolini, não é um sintagma, mas sim um estilema. O cinema, portanto, só pode criar uma “gramática estilística”:
a breve história estilística do cinema, por causa da limitação expressiva imposta pela enormidade numérica dos destinatários do filme, obrigou a que os estilemas, que no cinema se tornaram de imediato sintagmas e que, portanto, reintegraram a institucionalidade lingüística, fossem poucos e, sobretudo, grosseiros (lembremo-nos mais uma vez das rodas da locomotiva, a série infinita de primeiros planos idênticos etc.) (142)
Enquanto o lin-signo adotado pelo escritor já se encontra elaborado por uma história gramatical, popular e erudita, o im-signo é criado pelo próprio autor cinematográfico, e “extraído idealmente...do surdo caos das coisas” (140). A operação do autor cinematográfico pode recair, contudo, sobre uma escolha de im-signos que fazem parte de um “patrimônio visual” histórico determinado (clichês, signos de uma linguagem simbólica, etc.)
Isso leva Pasolini a considerar que o cinema é em sua essência ao mesmo tempo onírico e concreto (isto é, nunca é uma linguagem abstrata). Isso se deve às duas origens possíveis do im-signo: a) dos “arquétipos” dos sonhos e da memória; b) dos arquétipos da “mímica da fala” e da “realidade vista pelos olhos”: ou seja: o “cinema é simultaneamente demasiado subjetivo e extremamente objetivo” (142). Pelo seu caráter subjetivo ele deveria seguir uma tendência “lírico-subjetiva”. Pelo seu caráter objetivo, ele deveria seguir uma tendência “objetiva e informativa”.
Até este ponto, a reflexão de Pasolini parece girar em torno de algo que os lingüistas chamam de lingüística do signo, por oposição a uma lingüística da enunciação, de modo que, se ficasse aí, o pensamento de Pasolini estaria sujeito às mesmas críticas que viria a receber posteriormente a análise estrutural da linguagem cinematográfica de um Christian Metz. Mas Pasolini, que deveria conhecer a virada provocada pelo pelo pensamento de Emile Benveniste e, quiçá, de Bakhtin, iria trazer a discussão para o terreno do Discurso, ou mais precisamente, do Discurso Indireto Livre. Fundamentalmente, para Pasolini, a questão sobre a língua da poesia no cinema deve ser entendida à luz do conceito de Discurso Indireto Livre (exatamente porque concilia uma visão objetiva e subjetiva, a visão onírica e a concreta). O DIL representa a imersão do autor na alma de sua personagem (não só na psicologia, mas da língua), mas ele não se confunde com o monólogo interior: este é, antes, “um discurso revivido pelo autor através de uma personagem que é, pelo menos idealmente, da sua classe, da sua geração, da sua situação social; a língua pode ser, portanto, a mesma: a individualização psicológica e objetiva da personagem não é efeito da língua, mas do estilo. O DIL é mais naturalista, na medida em que é um verdadeiro Discurso Direto sem aspas, implicando, portanto, o uso da língua da personagem.” (144).
Ao colocar em pauta a questão dialetal (coisa que fez no início de sua trajetória de poeta e intelectual, como se sabe), Pasolini estava muito próximo do pensamento de um Mikhail Bakhtin. A distinção entre língua e estilo retoma, assim, a distinção linguagem x estilema: a linguagem é para Pasolini um fato social, histórico, e é por ela que deveria começar a verdadeira revolução: a linguagem dos despossuídos é dominada pelo “Monólogo Interior da Burguesia”. Na literatura burguesa o DIL é um pretexto: “o autor constrói uma personagem, falando talvez uma linguagem inventada, para exprimir a sua própria interpretação do mundo” (id.)
No cinema o discurso direto corresponde à (camera) subjetiva. Se o autor literário “dá a voz” ao personagem através das aspas/travessões/verbos dicendi, o cineasta “dá a visão” ao personagem, como ocorre nos exemplos seguintes, dados por Pasolini:“Cabíria vê as crianças”/ Carl Dreyer: “plano subjetivo” do cadáver que vê o mundo como este seria observado por quem se deitasse num caixão”.(144)
Por sua vez, o discurso indireto livre corresponderia, no cinema, à subjetiva indireta livre. Para entender esse conceito, alguns protocolos são indispensáveis, contudo. Em primeiro lugar a subjetiva indireta livre (SIL) não se confunde com o DIL: quando o escritor “revive o discurso” de uma de suas personagens, mergulha não apenas na sua psicologia, mas na sua língua (deve-se lembrar aqui que Pasolini não se refere ao que chamamos de diálogos dos personagens, mas à sua visão: isto é, a SIL se traduz fundamentalmente pelas imagens). Ora, diz Pasolini, se não existe uma “língua institucional do cinema”, não há como diferenciar a língua do autor da língua do personagem.
Tentemos esclarecer isso com um exemplo, de Grande sertão: veredas, num desses momentos em que o narrador-contador Riobaldo lembra-se dos momentos em que seu amor por um homem, Diadorim, se revelou, tornando-se esse fato uma posterior revelação para a sua vida:
Daqui veio que Diadorim mesmo estranhou aqueles meus modos. A entender me deu, e eu meniniquei, com soltura de palavras: como é que ia tolerar conselho ou contradição? Agravei o branco em preto. Mas Diadorim perseverou com os olhos tão abertos sem resguardo, eu mesmo um instante no encantado daquilo – num vem-vem de amor. Amor é assim – o rato que sai dum buraquinho: é um ratazão, é um tigre leão (p. 399)
O discurso de Riobaldo está sendo revivido pelo autor tanto no nível lingüístico, quanto no psicológico e social. Mas se pretendesse filmar o que Riobaldo vê, a diferença entre o autor-cineasta e Riobaldo-personagem poderia apenas ser de ordem psicológica ou social, mas nunca lingüística (p. ex.: se Riobaldo vê uma vereda de buritis, seu olhar se traduzirá numa determinada decupagem de planos selecionados pelo autor para se aproximar do tipo de visão que o personagem teria; mas essa decupagem não seria tão diferente se a mesma vereda de buritis fosse vista por Diadorim). Portanto, no filme, a diferença entre o ponto de vista do autor e do personagem (ou a tentativa de abolir essa diferença através da SIL) é de ordem estilística, mas não lingüística.
Confirma-se, assim, a hipótese de que o cinema não possui propriamente uma linguagem, mas é criado sempre a partir de um conjunto de estilemas. Uma das maneiras adequadas de desmistificar o conceito de “cinema de poesia” deveria ser a de compreender o trabalho poético como uma maneira de acentuar o caráter estilístico do cinema, que se opõe à aquelas características do cinema clássico, que optam por uma estratégia de “transparência”. É por isso que Pasolini insistia tanto na noção de estilo: “o cinema de poesia está, por isso, profundamente alicerçado sobre o exercício do estilo como inspiração, na maior parte dos casos, sinceramente poética” (id:149-150), ou, segundo uma frase memorável, “um cinema onde o verdadeiro protagonista é o estilo” (id:151). Seria preciso cuidar, no entanto, para entender essa frase como manifestação de esteticismo. Pelo contrário, quem fala aí é o semiólogo, o mesmo que distinguiu linguagem (langue) de estilo (parole).
O cinema de poesia é pois um cinema de estilo, e não um cinema de linguagem. E já que o estilo é a base de toda criação cinematográfica (e não uma “língua”), o cinema de poesia é, na verdade, um cinema de cinema. Ou, como disse Sganzerla na abertura de O bandido da luz vermelha: o cinema de poesia é aquele que se assume como “um filme de cinema”.
Para concluir este ensaio, que nada mais é do que uma tentativa de sistematizar uma série de afirmações de Pasolini, gostaria de seguir o pensamento pasoliniano naquilo que ele tem de mais ousado. A idéia de que o a realidade já é um cinema. Primeiro é preciso explicar o que Pasolini quer dizer com as frases “a realidade é um plano seqüência infinito” e “o cinema é a língua escrita da realidade”. Essa segunda afirmação diz duas coisas. A primeira é a distinção semiológica entre língua escrita e língua falada. A língua falada pode ser entendida filosoficamente como “potência”, ela não tem limites, ela não se fixa. Diante de um interlocutor não sabemos em que ponto acaba a “fala”. A língua falada é um sistema aberto. Ela é, como a realidade mesma, um “plano seqüência infinito”, isto é, não foi fixada. Já a língua escrita se caracteriza pela fixação e pelo limite (e também pela ordem). A língua escrita tem começo, meio e fim (mesmo se, em casos especiais como o palíndromo, a ordem dos termos possa ser invertida ou reversível). Por isso, ao realizar um filme, um autor-cineasta, está escrevendo a realidade. Seguindo essa lógica, entende-se por que, pelo seu caráter ilimitado, a realidade seja um “plano-seqüência infinito”. Se a “língua escrita” é “ato”, a realidade é “potência”.
Uma das conseqüências dessa lógica toda é a de que o cinema, como “língua escrita”, torna a realidade legível.O cinema, através da montagem (Pasolini recusa o plano-seqüência, e considera inócuos os longuíssimos planos fixos do cinema underground), realiza uma operação de escrita, de legibilidade, da realidade. A montagem, portanto, dá significação à realidade.
Mas a montagem, para Pasolini, não se limita ao cinema. O que chamamos de realidade também pode ser visto como uma “linguagem”. Essa linguagem, contudo, só pode ser entendida sob a perspectiva da morte. Enquanto vivemos, somos ao mesmo tempo um signo (para os outros) e uma possibilidade aberta (para nós e para os outros). A morte nos transforma em signos. A morte opera sobre nossa vida uma montagem:
É, assim, absolutamente necessário morrer, porque, enquanto estamos vivos, falta-nos sentido, e a linguagem da nossa vida (com que nos expressamos e a que, por conseguinte, atribuímos a máxima importância) é intraduzível: um caos de possibilidades, uma busca de relações e de significados sem solução de continuidade. A morte realiza uma montagem fulminante da nossa vida: ou seja, escolhe os seus movimentos verdadeiramente significativos (e doravante já não modificáveis por outros possíveis momentos contrários ou incoerentes, e coloca-os em sucessão, fazendo do nosso presente, infinito, instável e incerto, e por isso não descritível lingüisticamente, um passado claro, estável, certo, e por isso bem descritível lingüisticamente (no âmbito precisamente de uma Semiologia Geral). Só graças à morte a nossa vida nos serve para nos expressarmos.A montagem trabalha desse modo sobre os materiais do filme (que é constituído de fragmentos, longuíssimos ou infinitesimais, de um grande número, como vimos, de planos-seqüência e planos subjetivos infinitos) tal como a morte opera sobre a vida.(id:196)
Vê-se que é de largo espectro o conceito de uma Semiologia Geral em Pasolini. Ela seria capaz de descrever a própria vida, em todas as suas infinitas manifestações e possibilidades (culturais, estéticas, políticas). Não é de se estranhar, portanto, que os escritos de Pasolini tenham sido atacados tanto pelos estruturalistas quanto por alguns cineastas de vanguarda. Pois ele parecia estar muito à frente de seu tempo. Para ele, o cinema e a poesia deveriam ser entendidos sob o signo da vida.
Em resumo, podemos afirmar que a teoria do “cinema de poesia” coloca-se no cerne de toda uma reflexão sobre as possibilidades ainda não desenvolvidas inteiramente pelo cinema. Sobretudo no que diz respeito às suas possibilidades de comunicar, de maneira autêntica, novas experiências, propiciando novas reflexões sobre a “humana condição”. Nem arte nem indústria, ou algo mais do que a arte e a indústria, o cinema materializa um modo de pensar a realidade, através do qual ainda poderemos, quem sabe, tornar a experiência da vida um pouco mais significativa, e, quiçá, menos enfadonha.
Para Pasolini, Le chien andalou é um caso-limite, e não o único caso de poesia no cinema: poeticidade da tendência onírica se torna evidente até a loucura. Rosselini e a Nouvelle Vague : outra tendência para a poesia.